quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Veiculação de obras biográficas sem autorização do biografado: Alguns aspectos da ADI 4.815.



Em julho de 2012 foi distribuída no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.815, ajuizada pela Associação Nacional do Editores de Livros (Anel), questionando a interpretação legal dos artigos 20 e 21 do Código Civil. O objeto da referida ação tem como questão de fundo o acolhimento da tese de que a legislação civil, interpretada à luz dos preceitos constitucionais, não veda a veiculação de obras biográficas sem autorização prévia do biografado. Neste sentido, a petição inicial adotou como fundamentação o artigo 5º, incisos IV, IX e XIV da Constituição Federal.

O argumento central da associação é de que biografias estão sendo tolhidas em face da proteção da esfera privada e em função da ausência do consentimento das personalidades retratadas.

As principais teses colhidas na petição inicial podem ser resumidas nos seguintes pontos:

(i) a atual interpretação adotada não se coaduna com o sistema constitucional da liberdade de expressão e do direito à informação, configurando verdadeira censura privada, por via judicial, de biografias não autorizadas.
 (ii) as pessoas cuja trajetória pessoal, profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública, gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita.
(iii) a literalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil, ao não preverem qualquer exceção no tocante as obras biográficas viola as liberdades de manifestação de pensamento, da atividade artística, intelectual, científica e de comunicação (CF, art. 5º, IV e IX), além do direito difuso da cidadania à informação (art. 5º, XIV).
(iv) considera que superada a fase da censura estatal, submeter a livre manifestação de autores e historiadores ao direito potestativo dos personagens biografados, familiares, em caso de pessoas falecidas, configuraria censura privada.

Analisemos algumas interpretações sobre o tema em decisões já consagradas nos tribunais superiores, sobretudo no Superior do Tribunal de Justiça:

(a) “A liberdade de informação e de manifestação do pensamento não constitui direitos absolutos, sendo relativizados quando colidirem com o direito à proteção da honra e da imagem dos indivíduos, bem como ofenderem o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana” (Resp 783.139)
(b) “o abuso, no plano infraconstitucional, está na falta de veracidade das afirmações veiculadas, capazes de gerar indignação, manchando a honra do ofendido.” (Resp 439.584).
(c) “O veículo de comunicação exime-se de culpa quando busca fontes fidedignas, quando exerce atividade investigativa, ouve as diversas partes interessadas e afasta quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulgará. Pode-se dizer que o jornalista tem um dever de investigar os fatos que deseja publicar” (Resp 984.803).
(d) “O processo de divulgação de informações satisfaz verdadeiro interesse público, devendo ser célere e eficaz, razão pela qual não se coaduna com rigorismos próprios de um procedimento judicial.” (Resp 984.803).
(e) “As pessoas públicas, malgrado mais suscetíveis a críticas, não perdem o direito à honra. Alguns aspectos da vida particular de pessoas notórias podem ser noticiados. No entanto, o limite para a informação é o da honra da pessoa. Com efeito, as notícias que têm como objeto pessoas de notoriedade não podem refletir críticas indiscriminadas e levianas, pois existe uma esfera íntima do indivíduo, como pessoa humana, que não pode ser ultrapassada.” (Resp 706.769)
(f) Não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente a sua imagem. (Resp 58.101) (...) Se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução pela imprensa” (Resp 595600).

Pode-se destacar da leitura da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que existe uma tendência a ponderação dos princípios da liberdade de informação e defesa da privacidade. No entanto, há uma forte corrente no sentido de que àquelas pessoas que possuem exposição pública (artistas, políticos, atletas, entre outros) merecem uma análise específica quando em discussão certos aspectos dos direitos da personalidade.

No direito comparado esta mitigação já é verificada, como bem se observa do Código Civil Português:

“Art. 79º (...) Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de fatos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.”(Código Civil Português)

O entendimento também ficou consagrado na IV Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal, conforme leitura do enunciado n. 279:

“279 – Art.20. A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações.”
            
                  Assim, é possível concluir que existe verdadeiramente uma maior suscetibilidade, ou mesmo flexibilização, em determinados direitos da personalidade de pessoas notórias e famosas. Contudo, tal flexibilização não deve servir como véu, para encobrir destas pessoas, a proteção jurídica em face de abusos que possam ser cometidos pelos veículos midiáticos. 

Petição Inicial da ADI 4815 

Por Otávio Leal

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