quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Quadro Prático das Principais Ações Reais e dos Interditos Possessórios - Nelson Nery Júnior

Ação
Natureza
Finalidade
Requisitos
Rito
Remissões
Ação ex empto (ou ex vendito)
Ação real
Entrega da parte faltante da coisa; complementar a área dada a menor do avençado
Venda ad mensuram
Comum
- CC 500
Confessória
Ação real (petitória) – tem a propriedade e o direito real de servidão como causas de pedir (fundamentos)
Reconhecimento de servidão; respeitar seu exercício; perdas e danos; e demolição de eventual obra que impeça exercício da servidão, ou caução de que não será novamente impedido de exercer o seu direito.
É a ação do dono do prédio dominante, que tem uma servidão ativa, contra o dono do prédio serviente que impede a sua utilização.
a) A propriedade;
b) Prova da existência do direito de servidão
Comum
- CPC 95
2ª Parte
(competência)
- CC 1378 e 1383
Demarcatória
Ação real (tem como fundamento a propriedade e o direito de vizinhança).
Resguardar o direito de demarcação de prédios confinantes; aviventar rumos apagados e renovar marcos destruídos ou arruinados.
a) existência de direito real, de ambas as partes, sobre a coisa demarcante;
b) haver contiguidade dos prédios;
c) haver confusão entre os limites dos prédios confinantes ou perigo de haver.
Especial (CPC 950/966)
- CPC 946 a 966
- CC 1297
Demolitória
Ação real (tem por fundamento a propriedade e o direito de vizinhança)
Visa à demolição de um prédio construído em desrespeito às regras de vizinhança (CC 1277), do direito de construir (CC 1299/1313) ou em ruína (CC 1280).
Pode ser utilizada como medida provisional do Poder Público (CPC 888 VIII – v. tb CPC 934 III c/c 936 I).
É possível exigir-se caução de dano infecto (CPC 826 a 838; CC 1281).
a) A propriedade;
b1) Construção nova que desrespeite as normas relativas ao direito de vizinhança ou ao direito de construir (daí ser comum vir acompanhada ou posteriormente a ação de nunciação de obra nova);
b2) Prova da periculosidade da subsistência do prédio em ruína.
Comum ordinário, ou especial da nunciação de obra nova (CPC 934 a 940).
- CC 188 II, 1277, 1280 e 1312
- CAg 96 a 99
- CPC 888 VIII
Depósito
Ação real (tem por fundamento a obrigação da devolução da coisa de cuja propriedade o autor é titular , e o direito de seqüela que dela decorre).
Visa à pretensão à devolução da coisa dada em virtude de contrato de depósito.
Existência de contrato de depósito e não cumprimento voluntário da obrigação de restituição.
Especial
- CC 627 a 652 (sobretudo os CC 633 e 638)
- CPC 901 a 906
Discriminatória
Ação real
Promover a discriminação de terras devolutas da União (LAD 18)
a) dispensa ou interrupção por presumida ineficácia do procedimento administrativo (LAD 19 I); ou
b) não atendimento do edital de convocação ou da notificação (LAD 4º e 10); ou
c) alteração de quaisquer divisas após ter sido iniciado o procedimento discriminatório (LAD 25 c/c 24 c/c 19 III).
Comum sumário
- CPC 275 II g e LAD 20 caput
- LAD 18 a 23
Divisória
Ação real (tem por fundamento a propriedade condominial).
Resguardar direito do condomínio de exigir a divisão da coisa comum, ou seja, pôr termo ao condomínio (CC 1320).
a) Propriedade condominial;
b) Divisibilidade da coisa (CC 1320 a contrario sensu).
Especial
- CPC 967 a 981.
- LRP 213 §2º, 214 e 216.
- CC 1298, 1320, 1321
Embargos de terceiro
Ação real (quando movida pelo proprietário); ação possessória (quando movida por possuidor – v.g. usufrutuário, locador). O fundamento é a posse ou a propriedade de terceiro, alheio à relação processual.
Tendem a livrar o bem ou direito, de posse ou propriedade de terceiro, da constrição judicial que lhe foi imposta e processo de que não fez parte. Podem também ser opostos em caráter preventivo.
a) Não ser parte da ação principal, salvo nos casos do CPC 1046 §2º,
b) Insurgir-se contra a afirmação de que o bem constrito está na esfera de responsabilidade patrimonial do executado.
c) Hipóteses, em geral, do CPC 1046 e 1047 I e II.
Especial
- CPC 108 (competência funcional), 587, 1046, 1047 I e II a 1054;
- LF 93, LF/1945 79;
- CPP 130 II;
- CLT 884.
Imissão na posse
Ação real (a causa de pedir – fundamento – é a propriedade e o direito de seqüela que lhe é inerente – ius possidendi).
Pretende-se a posse, mas fundamentada no domínio.
a) Título da propriedade (ação de quem nunca possuiu a coisa);
b) Nunca ter tido posse.
Comum
- CC 1228
Interdito proibitório
Interdito possessório – tem como pedido e causa petendi a posse. Não é ação real.
Admite-se liminar na hipótese de ação de força nova (CPC 924 e 928). Nas ações de força velha apenas é cabível a tutela antecipada (CPC 273).
Preventiva (ação de preceito cominatório) – evitar turbação ou esbulho iminentes.
a) A posse,
b) Haver fundado receio de que o autor possuidor será molestado em sua posse (turbado ou esbulhado).
a) Comum, se se tratar de ação de força velha: ordinário, sumário (CPC 275 I) ou sumaríssimo (LJE 3º IV); ou
b) Especial, se se tratar de ação de força nova (CPC 924).
- CPC 95, (competência absoluta, sendo relativa apenas quando se tratar de ação cumulada).
- CC 1210
Manutenção de posse
Interdito possessório. Não é ação real. Admite-se liminar na hipótese de ação de força nova (CPC 924 e 928). Nas ações de força velha apenas é cabível a tutela antecipada (CPC 273).
Normalizador (da posse) (ação de força turbativa).
a) A posse,
b) Ter havido turbação (prática de atos que justifiquem uma concreta ameaça à posse);
c) Não pode ter como fundamento (causa de pedir) a propriedade.
Não admite, como defesa do réu, a exceptio proprietatis (CC 1210).
a) Comum, se se tratar de ação de força velha: ordinário, sumário (CPC 275 I) ou sumaríssimo (LJE 3º IV); ou
b) Especial, se se tratar de ação de força nova (CPC 924)
- CPC 95, 2ª parte (competência absoluta, sendo relativa apenas quando se tratar de ação cumulada)
- CC 1210
Negatória
Ação real relacionada com o exercício de servidões e com a presunção relativa de plenitude do domínio (CC 1231).
Ação do proprietário do prédio serviente. Tende a obstar que a plenitude do domínio seja violada pela constituição de injusta servidão, a que o titular do prédio dominante julga ter direito.
a) O domínio;
b) Prova da limitação do direito e domínio (servidão já constituída ou não), ou seja, que o réu disputa ilegitimamente de uma servidão que não se dispõe (Serpa Lopes, Curso, 4, 326, 633).
Comum
- CC 1378 e 1385.
Nunciação de obra nova
Ação real (embora se admita que possa ter a posse como causa de pedir, visa proteger a propriedade).
Tem por fundamento a propriedade e as relações de vizinhança dela decorrentes.
Também denominada de embargo de obra nova, tem o fim de impedir o prosseguimento de obras prejudiciais aos vizinhos (Hely, Dir. Construir, p. 259). Tem caráter preventivo. Admite-se a concessão liminar do embargo (CPC 937). Caso conclua-se a obra, admite-se a conversão em demolitória.
a) Tratar-se de obra nova (não concluída);
b) Sofrer ou estar na iminência de sofrer os efeitos negativos – prejuízo ou incômodo – da construção; e
c) Haver vínculo de conexão entre o ato e o prejuízo, ou incômodo (Gomes, Dir. Reais, p. 188), ou seja, estar na redoma de atuação da vizinhança.
Especial
- CPC 934 a 940
- CC 1310, 1309, 1311.
Passagem forçada
Ação real.
Desencravar prédio que não tenha acesso à via pública, fonte ou porto.
Prédio encravado (sem saída para via pública, fonte ou porto).
Comum
- CC 1285
Publiciana
Ação real (dominial – por ter como fundamento a propriedade, já adquirida pela usucapião ainda não declarada por sentença).
Retomar a posse por quem a perdeu, mas com fundamento no fato de já haver adquirido (de fato – já que não há título) a propriedade pela usucapião.
É a “reivindicatória” do proprietário de fato (Nery, RDPriv 7/107).
a) Ter transcorrido o lapso temporal para a aquisição pela usucapião;
b) Não ter sido ajuizada a ação de usucapião;
c) não ter posse atual, que lhe foi retirada por ato injusto de terceiro.
Comum
- CC 1228, 1238 e 1260.
Reintegração de posse
Interdito possessório.
Não é ação real.
Admite-se liminar na hipótese de ação de força nova (CPC 924 e 928). Nas ações de força velha apenas é cabível a tutela antecipada (CPC 273).
Corretivo (ação de força espoliativa).
a) A posse;
b) ter o possuidor sofrido esbulho em sua posse (= privação da posse);
c) não pode ter como fundamento (causa de pedir) a propriedade. Não admite, como defesa do réu, a exceptio proprietatis (CC 1210)
a) Comum, se se tratar de ação de força velha: ordinário, sumário (CPC 275, I) ou sumaríssimo (LJE 3º IV); ou
b) Especial, se se tratar de ação de força nova (CPC 924).
- CPC 95,
2ª Parte (competência absoluta, sendo relativa apenas quando se tratar de ação cumulada).
- CC 1210
Reivindicatória
Ação real (o fundamento do pedido – posse – é a propriedade e o direito de seqüela inerente a ela).
Visa a restituição da coisa (posse). É a ação do proprietário que tinha posse e a perdeu.
Prova da propriedade e da posse molestada.
O réu pode alegar, em defesa, a exceptio proprietatis. V. Nery-Nery, CC Comentado, coments. CC 1210 e STF 487.
Comum ordinário
- CC 1228
Usucapião
Ação real (trata-se de aquisição originária da propriedade pelo exercício da posse por determinado lapso temporal previsto em lei – prescrição aquisitiva).
Converter a posse ad usucapionem em propriedade (aquisição do domínio).
a) Posse ad usucapionem (v. CC 1196).
b) Transcurso do prazo legal (após este, o possuidor já é dono – v. v.g. STF 237).
Sumário (LUE 5º caput e ECid 14, para a usucapião especial rural e urbana) ou especial (CPC 941, para a usucapião ordinária e extraordinária).
- CPC 941 a 945;
- CF 183 e 189;
- CC 1238 a 1244 (imóveis) e 1260 a 1262 (móveis).





segunda-feira, 14 de julho de 2014

União estável e partilha de bem imóvel construído em terreno pertencente a terceiros.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação n. 0012940-61.2012.8.26.0071, enfrentou questão em que a autora ajuizou ação de reconhecimento e dissolução de união estável cumulada com pedido de indenização por dano moral, bem como a partilha de um bem imóvel.

No primeiro grau de jurisdição, a sentença reconheceu a união estável entre o casal no período de janeiro de 2000 até 31.07.2008, e ainda, declarou o direito da autora a 50% da construção edificada sobre o imóvel com exclusão do terreno pertencente a terceiro.

No segundo grau, a questão tocante ao reconhecimento e dissolução da união estável não comportou maiores discussões, ou seja, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu, de maneira incontroversa, caracterizada a situação prevista no art. 1.723 do Código Civil que define como entidade familiar a “união estável entre homem e mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família”. Assim, no caso concreto foram reconhecidos os requisitos da publicidade, temporalidade, e o ânimo de constituir família.

A discussão, contudo, residiu nas questões atinentes à partilha do bem imóvel.

A autora afirmava que construiu juntamente com o réu um imóvel em terreno de propriedade da família deste. Assim, com base no disposto no art. 1.725 do Código Civil julgava ter direito sobre o imóvel, uma vez que na união estável, não havendo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens.

Neste cenário, há de se presumir que os bens adquiridos pelo casal na constância da união estável foram adquiridos pelo esforço comum.

Da análise do arcabouço probatório o TJSP entendeu que não obstante a construção do imóvel tenha sido realizada em terreno da família do réu, a autora faria jus a meação sobre os direitos do imóvel construído pelo casal. No entanto, o órgão julgador fez importante ressalva, no sentido que eventual indenização deveria ser exigida dos proprietários do imóvel, em ação própria, porquanto foram eles que se beneficiaram com a edificação.

Esta parte da decisão que ressalta que a indenização deve ser exigida dos proprietários do imóvel e não do então companheiro da autora tomou como base o que prevê o art. 1.255 do Código Civil: “Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé,  terá direito a indenização”. Percebe-se, portanto, que são relações jurídicas distintas a da autora e do réu (antigo companheiro) – reconhecimento/dissolução/efeitos da união estável - e da autora com os proprietários do terreno (beneficiados com a edificação) – indenização por edificação em terreno alheio.

O decisum trouxe ainda algumas importantes considerações visto que, no caso concreto, a união estável restou dissolvida em julho de 2008, logo, após a vigência da Lei 9.278/96 e do Código Civil de 2002, não se fazendo necessária a prova do esforço comum entre os conviventes para o direito a partilha do patrimônio obtido durante a união estável.

Note-se, por fim, que há aqui importante congruência com o direito civil constitucional no sentido de que o art. 226, § 3° da Constituição Federal elevou a união estável ao grau de entidade familiar, distinguindo-a da sociedade de fato, afastando, portanto, a aplicação do enunciado da Súmula 380 do STF, presumindo como fruto da cooperação entre os companheiros os bens adquiridos durante o reconhecimento da união estável.

Por Otávio Leal

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Responsabilidade Civil por abuso de direito na ação executiva.

      
O direito à tutela jurídica do Estado não pode ser uma aventura processual. Atento a isto, o legislador previu em nosso ordenamento inúmeros mecanismos que mitigam a utilização abusiva de um direito. É possível encontrar regras, tanto no Código Civil quanto na legislação processual, com a finalidade de frear no nosso sistema jurídico o abuso de direito e consagrar o princípio da boa-fé nas relações jurídicas.

Ocorre que, e aqui utilizamos a lição de Nehemias Domingos de Melo, “a matéria é muito controvertida, exatamente por situar-se numa linha muito tênue entre o exercício regular de um direito e o exercício abusivo deste mesmo direito.”

O nosso Código Civil prevê expressamente em seu art. 186: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” No entanto, é na seara processual que se visualiza com mais facilidade institutos que visam evitar as chamadas “chincanas processuais”, vide: a punição a litigância de má-fé. A temática foi enfrentada pelo STJ no julgamento do Resp 1.245.712/MT onde foi reconhecido o abuso de direito na ação executiva. Vejamos o caso.

A empresa Agropecuária Alvorada Ltda ajuizou ação reivindicatória que, ao final, foi julgada improcedente. Neste cenário, o advogado da parte vencedora ingressou uma ação executiva para receber os honorários advocatícios decorrentes da sucumbência da referida empresa, bem como de seus sócios, fato que gerou transtornos para estes, pois foram bloqueados valores nas suas contas até conseguirem reverter a situação. 

Em razão disso, os sócios ajuizaram ação de indenização contra o advogado, que no primeiro grau foi julgada improcedente sob o fundamento de que não se poderia qualificar de absurdo o ajuizamento de execução também contra os sócios, sobretudo diante da teoria da desconsideração da personalidade. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul manteve a sentença fundamentando no direito constitucional de petição e ação.

Os sócios da empresa interpuseram recurso especial em que o principal fundamento seria a responsabilidade objetiva do exequente que propõe execução, sabendo que não há dívida ou que a obrigação exequenda não vincula a parte apontada como devedora, dando ensejo ao abuso de direito.

O STJ deu razão aos sócios entendendo que: (i) o título executivo que era judicial, continha obrigação relativa à empresa; (ii) entender de forma diversa seria deixar ao alvedrio dos exequentes, escolher quem se sujeitaria à ação executiva, independentemente de quem fosse o devedor vinculado ao título executivo; (iii) as sociedades de responsabilidade limitada tem vida própria, não se confundindo com a pessoa dos sócios, assim, havendo integralização das cotas o patrimônio pessoal em regra não responderia pela dívida da sociedade – princípio da autonomia da pessoa jurídica – que só se afastaria em situações pontuais e concretas não verificadas no título; (iv) na ação executiva o credor simplesmente incluiu os sócios sem justificar em nenhum momento esta inclusão na desconsideração da personalidade jurídica; (v) ocorreu, assim, uma desconsideração indireta, já que não fora nem requerida pelo advogado nem declarada pelo juiz.

Com base na fundamentação o STJ entendeu por configurado o abuso de direito na ação executiva ensejando a reparação civil em danos morais e materiais aos sócios.

Da situação apresentada podemos perceber que a grande confusão que se fez teve como principal razão a utilização de forma errônea da desconsideração da personalidade jurídica que não pode ser realizada de forma indireta, sem o requerimento da parte ou declaração do juiz, além de ser utilizada, conforme bem pontuou o STJ, somente em situações pontuais e concretas tal como prevê o art. 50 do Código Civil.

Por fim, o julgado reforça a necessidade da preservação da boa-fé processual que uma vez afastada pode ensejar a responsabilidade civil pelos danos causados, como bem se verificou no presente caso.

Por Otávio Leal

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Habeas Corpus em ação de interdição e aplicação preventiva da Lei Maria da Penha em ação cível: O direito privado e o diálogo das fontes.


              A Constitucionalização do Direito Privado - na verdade a sua reconstrução - seguiu uma tendência que se prospectou em todos os ramos do direito. Trata-se na verdade de construção não só teórica, mas também eminentemente prática.  

Cuida-se de fenômeno que alterou a maneira de explicar e aplicar o direito. A constitucionalização, na lição de Perlingieri, possui 3 vetores teóricos: i) eficácia normativa da constituição (supremacia); ii) Unidade do ordenamento jurídico refletindo no pluralismo das fontes e (iii) uma nova teoria da interpretação jurídica.

No mesmo sentido Fachin, para quem o direito privado deve ser interpretado superando antigos paradigmas como: i) monismo das fontes; ii) rigidez literal da hermenêutica e iii) a significação monolítica dos institutos.

Neste cenário, dois recentes julgados apontam claramente a tendência verificada pela doutrina: o primeiro julgado de 17 de dezembro de 2013 trata da impetração de Habeas Corpus em Ação de Interdição, já o segundo trata da possibilidade de aplicação preventiva da Lei Maria da Penha em ação cível.

No HC 135.271-SP, de Relatoria do Ministro Sidnei Beneti, a 3ª Turma do STJ entendeu ser cabível a impetração de habeas corpus para reparar suposto constrangimento ilegal à liberdade de locomoção decorrente de decisão proferida por juízo cível que tenha determinado, no âmbito de ação de interdição, internação compulsória.

O Superior Tribunal de Justiça se mostrava reticente quanto a utilização de habeas corpus em matéria cível, a prova é tanta que existe entendimento daquela corte de justiça de que referido remédio constitucional não constituiria via processual idônea para a impugnação de decisão proferida por juízo cível competente para a apreciação de matérias relativas a Direito de Família. (HC 206.715-SP, Quarta Turma, DJe 1/2/2012; e HC 143.640-SP, Terceira Turma, DJe 12/11/2009).

No caso dos autos, embora em decisão proferida pelo Juízo da Vara da Família, entendeu aquela turma se tratar de hipótese capaz, ao menos em tese, de configurar constrangimento ilegal à liberdade de locomoção. Assim, caberia remédio constitucional, nos termos do art. 5º, LXVIII, da CF, segundo o qual o habeas corpus será concedido "sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder".

O segundo julgado, proferido pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça – o número do processo não foi divulgado em razão de segredo judicial – admitiu pela primeira vez a aplicação de medidas protetivas da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) em ação cível, sem existência de inquérito policial ou processo penal contra o suposto agressor.

O ministro Luis Felipe Salomão, relator do caso, consignou: “Parece claro que o intento de prevenção da violência doméstica contra a mulher pode ser perseguido com medidas judiciais de natureza não criminal, mesmo porque a resposta penal estatal só é desencadeada depois que, concretamente, o ilícito penal é cometido, muitas vezes com consequências irreversíveis, como no caso de homicídio ou de lesões corporais graves ou gravíssimas.

E justificou: “franquear a via das ações de natureza cível, com aplicação de medidas protetivas da Lei Maria da Penha, pode evitar um mal maior, sem necessidade de posterior intervenção penal nas relações intrafamiliares.”

Segundo o entendimento da quarta turma as medidas protetivas da Lei Maria da Penha, observados os requisitos para concessão de cada uma, podem ser pedidas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor. Nessa hipótese, as medidas de urgência terão natureza de cautelar cível satisfativa. 

Dos dois julgado é claramente perceptível a influência de uma construção do direito privado contemporâneo  na legalidade constitucional. A teoria do diálogo das fontes, conforme anota Cláudia Lima Marques ensina que a “doutrina atualizada, está a procura, hoje, mais da harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema) do que da exclusão.”

Assim, a aplicação das medidas protetivas da Lei Maria da Penha em matéria cível reforça esse caráter integrativo entre as fontes do direito, além de superar a forma de mera subsunção do fato a norma, valorizando, a otimização e realização dos preceitos através de uma atividade criativa da norma pelo julgador.

Ademais, a leitura ampla dos institutos como no caso da admissibilidade de utilização do habeas corpus em uma ação de interdição demonstra a leitura do sistema de direito privado, a partir da constituição, e mais que isso, como bem apontou Fachin ao tratar da eficácia  do Direito Civil Constitucional “a Constituição e os direitos fundamentais se aplicam às relações interprivadas com a mediação realizada pela atuação jurisdicional, além da sua própria eficácia direta e imediata.”

Por Otávio Leal

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Mora: a importância do momento de sua constituição.

Tema bastante tratado pela doutrina e jurisprudência, a constituição em mora do devedor varia conforme a obrigação estabelecida. Assim, a análise do conteúdo da relação obrigacional se revela como primordial na distinção e efeitos que a constituição em mora apresenta, seja decorrente de obrigações com prazo determinado ou indeterminado, se obrigação de dar, fazer, não fazer ou decorrente de ato ilícito, ou ainda, conforme o tipo contratual, podendo, inclusive, derivar da própria lei.

A definição do momento da constituição em mora do devedor adquire relevância diante da necessidade de estipulação do seu termo inicial, sobretudo, para fins de composição dos juros moratórios, ou seja, os juros que indenizam o credor nos casos de retardamento do adimplemento.

Neste sentido, importante ter em mente dois importantes artigos do Código Civil de 2002 que tratam da constituição em mora do devedor, quais sejam: o artigo 397 e 398:

“Art. 397 - O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor”.
Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.”

“Art. 398 - “Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou.”

Os artigos supra, trazem em seu bojo as distinções estabelecidas pelo legislador frente à inexecução culposa da obrigação por parte do devedor (elemento subjetivo da mora solvendi), em duas formas: mora ex re e mora ex persona.

A mora ex re é aquela que independe de interpelação, certo que, decorre do próprio inadimplemento, na clássica expressão, é “como se o termo interpelasse no lugar do credor” - dies interpellat pro homine. O caput do artigo 397 do CC é típico caso de mora ex re, uma vez que o simples inadimplemento da obrigação no seu termo constitui de pleno direito em mora o devedor. Do mesmo modo, temos o artigo 398 que versa sobre as obrigações decorrentes de ato ilícito, considerando o devedor em mora desde a prática do ato que violou o direito.

Importante aqui estabelecer que ao contrário do que se pode inferir de alguns conceitos como no extraído do julgamento do Recurso Especial nº 780.324 – PR onde constatamos a afirmação de que “a mora ex re decorre do próprio inadimplemento de obrigação positiva”. Temos mora ex re, também, em decorrência de obrigações negativas, conforme literal disposição do art. 390 do CC que estabelece: “Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster.”

Sobre o tema conforme aponta as lições de Judith Martins-Costa "a prestação negativa é inadimplida justamente no momento em que é praticada. Não há necessidade de notificação ou interpelação, para a constituição em mora que é automática, ou ex re.” (Comentários ao novo Código Civil, v. 5, t. 2, Forense, 2004, p. 165). Assim, importante deixar claro que existe a possibilidade de existir mora ex re em virtude de obrigações negativas.

Ao reverso, não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial. Nestes casos, estamos diante da mora ex persona onde se torna forçoso à atuação do credor para constituir o devedor em mora.

Sobre o sentido da interpelação, temos importante lição de Pontes de Miranda:

"a interpelação tem por fim prevenir ao devedor de que a prestação deve ser feita. Fixa esse ponto, se já não foi fixado; se já foi fixado, a interpelação é supérflua, porque o seu efeito mais importante, a mora, se produziu antes dela, ipso iure" (Tratado de direito privado . Tomo II. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2002, p. 519)

Como a mora ex re é dotada de uma maior precisão quanto ao seu termo inicial não traz tantas polêmicas quando da sua delimitação. O mesmo não ocorre quanto a mora ex persona, que recorrentemente é tema em demandas judiciais que discutem o exato momento de sua constituição para todos os fins legais. 


Por Otávio Leal



segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Teoria do adimplemento substancial e boa-fé objetiva como elementos limitadores do exercício de direitos subjetivos dos credores.



O artigo 475 do Código Civil prescreve “a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.” Trata-se, portanto, de importante artigo que regula os negócios jurídicos, trazendo, especificamente, uma cláusula resolutiva.

A interpretação que o Superior Tribunal de Justiça vem conferindo em diversos julgados que tratam sobre o tema é de que o referido artigo deve ser lido conjuntamente com as cláusulas gerais previstas no Código Civil, precisamente a boa-fé objetiva e função social dos contratos.

A teoria do adimplemento substancial, consistente no impedimento do credor rescindir o contrato, nos casos em que parte essencial da obrigação assumida tenha sido cumprida pelo devedor, não perdendo, contudo, o direito de obter o restante do crédito em ação de cobrança, mitiga, de certa forma, o direito conferido ao credor conforme literal disposição do artigo 475 do CC.

Neste sentido, temos o julgamento do Resp 1.202.514, onde a ministra Nancy Andrighi, aponta como uma das funções do princípio da boa-fé objetiva ser uma forma de limite ao exercício de direitos subjetivos. Senão vejamos:

“...Com efeito, a boa-fé objetiva, princípio geral de direito recepcionado pelos arts. 113 e 422 do CC/02 como instrumento de interpretação do negócio jurídico e norma de conduta a ser observada pelas partes contratantes, exige de todos um comportamento condizente com um padrão ético de confiança e lealdade.
A boa-fé objetiva induz deveres assessórios de conduta, impondo às partes comportamentos obrigatórios implicitamente contidos em todos os contratos, a serem observados para que se concretizem as justas expectativas oriundas da própria celebração e execução da avença, mantendo-se o equilíbrio da relação. Essas regras de conduta não se orientam exclusivamente ao cumprimento da obrigação, permeando toda a relação contratual, de modo a viabilizar a satisfação dos interesses globais envolvidos no negócio, sempre tendo em vista a plena realização da sua finalidade social.
Dessarte, o princípio da boa-fé objetiva exerce três funções: (i) instrumento hermenêutico; (ii) fonte de direitos e deveres jurídicos; e (iii) limite ao exercício de direitos subjetivos. A esta última função aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios, como meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando os seguintes institutos: tu quoque , venire contra factum proprium , surrectio e supressio.”

No caso concreto, uma indústria firmara contrato de prestação de serviços jurídicos com um escritório de advocacia que previa o pagamento de prestações mensais, reajustadas a cada 12 meses. Ocorre que, durante 6 anos da vigência do negócio não houve qualquer correção nas parcelas prestadas. O escritório optou por renunciar aos reajustes anuais, visando preservar a manutenção do contrato. Porém, quando da rescisão contratual o escritório cobrou o pagamento dos reajustes retroativos.

Ocorreu aqui típica hipótese de supressio, para utilizar o conceito da ministra em seu voto: como “a possibilidade de se considerar suprimida determinada obrigação contratual na hipótese em que o não exercício do direito correspondente, pelo credor, gerar ao devedor a legítima expectativa de que esse não-exercício se prorrogará no tempo. Em outras palavras, haverá redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer direito ou faculdade, criando para a outra a sensação válida e plausível – a ser apurada casuisticamente – de ter havido a renúncia àquela prerrogativa.”

Em outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, Resp 1.051.270-RS, a teoria do adimplemento substancial foi utilizada em um contrato de arrendamento mercantil onde a instituição bancária buscava a reintegração de posse contra um cliente em razão do inadimplemento de 5 das 36 parcelas devidas no contrato de aquisição de automóvel.

Ficou assentado, no supracitado acórdão, que a teoria do adimplemento substancial tem como escopo “impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato.” Contudo, o ministro relator Luis Felipe Salomão deixou claro que não se tratava de afirmar que a dívida desapareceria, mas tão somente que o credor poderia se valer de outros meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados para o recebimento do crédito remanescente.

Assim, percebe-se que a boa-fé objetiva, como cláusula geral do direito civil, nas suas mais diversas expressões (venire contra factum proprium, exceptio dolo, tu quoque, supressio e surrectio), dentre as quais destacamos a teoria do adimplemento substancial, se revela como verdadeira limitação ao exercício de alguns direitos subjetivos dos credores como bem se verificou da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

     
Por Otávio Leal