Em
julho de 2012 foi distribuída no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 4.815, ajuizada pela Associação Nacional do Editores
de Livros (Anel), questionando a interpretação legal dos artigos 20 e 21 do
Código Civil. O objeto da referida ação tem como questão de fundo o acolhimento
da tese de que a legislação civil, interpretada à luz dos preceitos
constitucionais, não veda a veiculação de obras biográficas sem autorização
prévia do biografado. Neste sentido, a petição inicial adotou como
fundamentação o artigo 5º, incisos IV, IX e XIV da Constituição Federal.
O
argumento central da associação é de que biografias estão sendo tolhidas em face
da proteção da esfera privada e em função da ausência do consentimento das
personalidades retratadas.
As
principais teses colhidas na petição inicial podem ser resumidas nos seguintes
pontos:
(i)
a atual interpretação adotada não se coaduna com o sistema constitucional da
liberdade de expressão e do direito à informação, configurando verdadeira
censura privada, por via judicial, de biografias não autorizadas.
(ii) as pessoas cuja trajetória pessoal,
profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública,
gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita.
(iii)
a literalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil, ao não preverem qualquer
exceção no tocante as obras biográficas viola as liberdades de manifestação de
pensamento, da atividade artística, intelectual, científica e de comunicação
(CF, art. 5º, IV e IX), além do direito difuso da cidadania à informação (art.
5º, XIV).
(iv)
considera que superada a fase da censura estatal, submeter a livre manifestação
de autores e historiadores ao direito potestativo dos personagens biografados,
familiares, em caso de pessoas falecidas, configuraria censura privada.
Analisemos
algumas interpretações sobre o tema em decisões já consagradas nos tribunais
superiores, sobretudo no Superior do Tribunal de Justiça:
(a)
“A liberdade de informação e de manifestação do pensamento não constitui
direitos absolutos, sendo relativizados quando colidirem com o direito à
proteção da honra e da imagem dos indivíduos, bem como ofenderem o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana” (Resp 783.139)
(b)
“o abuso, no plano infraconstitucional, está na falta de veracidade das
afirmações veiculadas, capazes de gerar indignação, manchando a honra do
ofendido.” (Resp 439.584).
(c)
“O veículo de comunicação exime-se de culpa quando busca fontes fidedignas,
quando exerce atividade investigativa, ouve as diversas partes interessadas e
afasta quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulgará. Pode-se
dizer que o jornalista tem um dever de investigar os fatos que deseja publicar”
(Resp 984.803).
(d)
“O processo de divulgação de informações satisfaz verdadeiro interesse público,
devendo ser célere e eficaz, razão pela qual não se coaduna com rigorismos
próprios de um procedimento judicial.” (Resp 984.803).
(e)
“As pessoas públicas, malgrado mais suscetíveis a críticas, não perdem o direito
à honra. Alguns aspectos da vida particular de pessoas notórias podem ser
noticiados. No entanto, o limite para a informação é o da honra da pessoa. Com
efeito, as notícias que têm como objeto pessoas de notoriedade não podem
refletir críticas indiscriminadas e levianas, pois existe uma esfera íntima do
indivíduo, como pessoa humana, que não pode ser ultrapassada.” (Resp 706.769)
(f)
“Não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade,
estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune
de qualquer veiculação atinente a sua imagem. (Resp 58.101) (...) Se a
demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua
reprodução pela imprensa” (Resp 595600).
Pode-se
destacar da leitura da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que
existe uma tendência a ponderação dos princípios da liberdade de informação e
defesa da privacidade. No entanto, há uma forte corrente no sentido de que
àquelas pessoas que possuem exposição pública (artistas, políticos, atletas,
entre outros) merecem uma análise específica quando em discussão certos aspectos dos direitos da
personalidade.
No
direito comparado esta mitigação já é verificada, como bem se observa do Código
Civil Português:
“Art.
79º (...) Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o
justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou
de justiça, finalidades científicas, didáticas ou culturais, ou quando a
reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de fatos de
interesse público ou que hajam decorrido publicamente.”(Código Civil Português)
O
entendimento também ficou consagrado na IV Jornada de Direito Civil, realizada
pelo Conselho da Justiça Federal, conforme leitura do enunciado n. 279:
“279
– Art.20. A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses
constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso
à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em
conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade
destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa,
biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de
informações.”
Assim, é possível concluir que existe verdadeiramente uma maior suscetibilidade,
ou mesmo flexibilização, em determinados direitos da personalidade de pessoas
notórias e famosas. Contudo, tal flexibilização não deve servir como véu, para encobrir
destas pessoas, a proteção jurídica em face de abusos que possam ser cometidos
pelos veículos midiáticos.